terça-feira, 9 de novembro de 2010

Muitas Graças a Deus e Poucas Graças com Deus

“Muitas graças a Deus e poucas graças com Deus”, parafraseava o povo. A religião, para as gentes daquelas paragens, era algo de muito sério para ser alvo de qualquer gracejo ou comentário menos apropriado. Era na fé que aquelas almas, sofridas e açoitadas pelas agruras de uma existência paupérrima, encontravam refrigério e recebiam alento para superar as vicissitudes do seu quotidiano. A devoção ao divino induzia um misto de temor e respeito que continha os seus impulsos e tentações, contribuindo para a ordem social e a estruturação de um ritmo de vida pautado pelos rituais seculares da Igreja. As sagradas escrituras preenchiam as lacunas dos seus parcos conhecimentos, tranquilizavam-lhes o espírito que desconhecia o absurdo e se resignava à vontade clemente e omnipotente do criador. Mas, apesar da deferência e reverência que devotavam ao clero e à instituição que representavam, há nota de alguns casos que fogem à regra e, como tal, resistem ao passar das gerações.
Era comum, num passado não muito distante, as paróquias serem visitadas por missionários que, com encenadas pregações de eloquente oratória, exaltavam o fervor religioso e emocionavam devotas plateias. Estava um destes pregadores proferindo um inflamado sermão, batendo energicamente com os punhos no parapeito do púlpito enquanto retratava dantescamente o inferno. Alternando, para amenizar atemorização geral, com a evocação da misericórdia divina reflexa no milagre da multiplicação dos pães. Mas, com o entusiasmo do discurso, inverteu a desproporção, dizendo:
-O Senhor, com cinco mil pães, deu de comer a cinco ….
Um dos presentes, antes que o orador pudesse corrigir a gafe, comentou:
- Esse milagre também eu o fazia.
O prelado, sem se dar por achado, prosseguiu, mas não esqueceu a afronta. Quando, no ano seguinte, voltou a pregar na mesma freguesia, aludiu ao milagre, mas sem se enganar. Então, ao terminar, fixando o ousado interventor do ano transacto, interpelou assembleia:
- Digam-me agora, se algum de vós também fazia este milagre?
O ousado serrano, sem perder tempo, respondeu:
- Com o que sobrou do ano passado, ainda era bem capaz de o fazer.
Esquecendo-se do local onde se encontravam, soou uma sussurrada risada perante as rubras faces do desfeiteado pregador. Consta-se, que nunca mais pregou naquele lugar, pois compreendeu que aquelas pessoas eram simples, mas não simplórias e perspicácia daquele teor não se aprendia nas páginas do breviário.
Esta estória foi-me narrada pelo “Febra”. Não me recordo se aconteceu na Gralheira e foi por ele presenciada, ou se noutro lugar das redondezas e contada por uma memória mais antiga.

A “exemina”era feita aos paroquianos, para testar os seus conhecimentos doutrinários, aquando da confissão obrigatória pela Páscoa da ressurreição. Foi pródiga em estórias caricatas, pois era com preocupação e enfado que viam aproximar-se a data de tal imposição canónica, obrigando-os a rever a doutrina que aprenderam em crianças à custa de “mosquetes” e ameaças. Alguns, embora nada entendessem, sabiam a ladainha seguida e salteada, mas outros tinham preocupações mais prementes que os ensinamentos da catequese. Por isso, de vez em quando, aconteciam exames como os que vou contar:
O “Breca”, segundo os vários relatos que tenho ouvido, era homem de carácter irascível, de poucas palavras, de poucos amigos e não muito dado às coisas da Igreja. Contudo, uma ocasião compareceu à “desobriga”. Depois de aguardar pela sua vez e ter feito as vénias e benzeduras habituais, apresentou-se para receber o sacramento, que terá decorrido nestes termos:
- Há quanto tempo não se confessa?
Ao que o inquirido com a sua voz rouca e arrastada respondeu:
- Há dez anos!
- E que pecados cometeu?
- Todos!... Menos matar e roubar.
- Muito bem… Agora… diga-me…Tem cumprido o jejum na quaresma?
- Todo o ano!... Esse preceito cumpro à “risca”.
O padre achou por bem dar por concluída a primeira parte do oficio e passou à “exemina”. Como deve ter pensado que o “exeminado” não seria muito versado nos ensinamentos da catequese, fez-lhe uma das perguntas mais elementares da doutrina cristã:
- Diga-me, quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
O “Breca” sem hesitar, nem notar no prefixo “tri” que foneticamente lhe indiciava a resposta, respondeu:
-São dez!
O confessor, ao ouvir tal despautério, em tom irónico comentou:
-Ainda são poucos…. Vá estudar a doutrina e volte cá amanhã.
O Homem levantou-se a ruminar impropérios e saiu do templo determinado em saber quantos elementos tinha essa trindade. Ao chegar ao adro, encontrou alguém que lhe perguntou:
-Então, passas-te na “Exemina”?
-Não!..Não soube quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade.
Ao que o outro, perante tamanha ignorância, respondeu:
- São três!..Seu burro!
O “Breca”, com um sorriso sarcástico, retorquiu:
-Três!...Vai lá com três!...Dez disse eu e ele achou pouco!...
Não sei se o “Breca” retornou para repetir o exame, ou se chegou a saber qual a composição da Santíssima Trindade, mas sei que a estoriografia da Gralheira, de forma recorrente, recorda esta confissão de contornos tão invulgares.

Outra resposta digna de registo foi dada pelo “Branquinho”. Quando o padre lhe perguntou:
- Onde está Deus?
Respondeu com a simplicidade dos que nada têm:
-Deve estar no mesmo sitio do ano passado, pois ele não anda, como eu, de casa arrendada.

Apôs ter terminado o período destinado à confissão obrigatória, no domingo seguinte o Sr. abade, no final da missa, chamava por todos os cabeças de casal, que respondiam pelo seu agregado familiar dizendo:
-Está tudo!
Caso não estivesse, tinham de referir o número de elementos em falta.
Uma ocasião, o meu Bisavô Amadeu, pai da minha avó materna, ao ser inquirido respondeu como a maioria:
-Está tudo!
Ao que o padre, consultando os seus apontamentos, retorqui;
-Tudo não!...Falta o senhor.
Então, perante a admiração geral, o Sr. Amadeu Cerveira teve este desabafo:
-Não ia aprender mais do que aquilo que sabia…

Essa prática da “Exemina” há muito que caiu em desuso, embora se mantenha a da “desobriga”.Mas, estou certo, que se existisse, os “exeminados” ou se remetiam ao silêncio, ou as respostas seriam ainda mais inusitadas.

Vítor Silvestre

sábado, 17 de julho de 2010

Rivalidades

A rivalidade entre vizinhos é algo tão ancestral como os primórdios da humanidade. Seja pela posse da terra, acesso a recursos naturais ou por meras questões de orgulho exacerbado, todos os motivos potenciam conflitos de maior ou menor gravidade.
Os da Panchorra, como são os que nos estão mais próximo, tornaram-se os nossos arqui-inimigos naturais. As origens desse antagonismo perdem-se nos meandros do tempo e os motivos esbatem-se na oralidade das antigas memórias. Talvez por não existir uma razão palpável que sustentasse essa demanda. Ela existia apenas porque eles estavam ali e nós aqui, com o Cabrum a delimitar a fronteira física desta inimizade latente e adversa à racionalidade. Sendo o ribeiro a raia, convertia o Poço do Morrão numa espécie de terra de ninguém, local de renhidos combates pelo direito de se banharem durante o estio. Os Panchorros, como ironicamente eram designados, embora fossem em menor número, demonstravam a precisão e o alcance de fundibulários experimentados. Os seus projécteis metralhavam sem aviso os incautos banhistas que, apressadamente, recolhiam as suas roupas e subiam a encosta até à Seara do Ferro. Desse local, municiados da abundante pederneira aí existente, entrincheiravam-se e, do elevado reduto, ripostavam ao ataque perpetrado com tácticas de guerrilha elaboradas. A primeira abordagem era feita pelos mais novos, com a finalidade de criar uma manobra de diversão que distraísse os oponentes, sendo, assim, apanhados desprevenidos e sem tempo de reacção. Muitos rapazes da Gralheira aprenderam a nadar devido a estas circunstâncias. Quando se encontravam na margem inimiga, o medo superava a razão e, sem hesitar, lançavam-se à água como exímios nadadores.
Esta conflituosidade era mais visível na rapaziada, mas era reflexo de uma litigância enraizada na génese desta gente que, embora vivesse em aparente harmonia, mantinha sempre, na sua interacção, um ressentimento e uma desconfiança mútua. No entanto, existiam duas excepções: fogos e funerais. Nesses momentos, as desavenças eram esquecidas e os votos de pesar e a entreajuda eram genuínos. Nos incêndios o auxílio era fundamental. A Panchorra possuía escassos recursos de água, tendo esta, muitas vezes, de ser transportada do ribeiro até ao local do sinistro. Como também era imprescindível a deslocação para se abastecerem de géneros e mercadorias, em virtude da inexistência de estabelecimentos comerciais e a Gralheira ser o interposto mais próximo. Embora as duas aldeias fossem paupérrimas, nós éramos um pouco menos. Possuíamos mais e melhores recursos agro-pecuários e uma panóplia de serviços artesanais necessários a uma economia de subsistência. A modernidade chegou-nos mais cedo, mas os panchorrenses, capitaneados pelo famigerado “ Ruço da Cara Linda” que de forma depreciativa dizia:
- Os da Gralheira, não valem nada, só comem cebola!... - Não baixavam a cerviz e com um orgulho inabalável, porfiavam nos pergaminhos dos seus antepassados.
Este panorama não faz parte das minhas memórias. Eu nasci numa época em que o espectro da fome se dissipara e a miséria tornara-se mais modesta. Estômagos reconfortados e condições de vida mais dignas, traduzem-se em mentes mais esclarecidas e menos propensas a obedecer aos instintos primários dos que estão no limiar da subsistência. A emigração quebrou as linhagens consanguíneas perpetuadas pela interioridade, contribuindo para a emergência de identidades comunitárias mais ecléticas e menos arreigadas às suas raízes.
Gradualmente, o posicionamento antípoda deu lugar a relações mais amistosas e só esporadicamente, como nos jogos da bola, os espíritos avinhados ou empedernidos denotavam resquícios desse passado desavindo. Hoje, convivemos em paz. No entanto, o velho estigma continua impresso no subconsciente de algumas almas e, de vez em quando, ainda se ouve dizer:
- Cuidado com os da Panchorra!...

Vítor Silvestre

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Bola



A “bola”, como é comum designar-se o futebol, foi desde os anos quarenta do século passado o principal meio de entretenimento dos rapazes da Gralheira. A sua aparição nesta remota aldeia, apesar de chegar mais de cinco décadas depois da sua introdução em Portugal, pode dizer-se que, por estas paragens serranas, foi pioneira na prática deste desporto.
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Da admiração inicial, Como denota um diálogo entre dois homens de Faifa:
- Olha lá!..Já ouviste falar naquela “cousa” que jogam na Gralheira…A que chamam bola?...
-Ouvi!... Correm atrás dela e dão-lhe pontapés…
- E também lhe arrimam de cabeça!..
À paixão exacerbada foi um processo extremamente célere.
Os da Gralheira, como precursores deste advento, evoluíram mais cedo que os demais e, por conseguinte, converteram-se na equipa dominante das redondezas. Desde os primórdios que se instituiu uma dinâmica de vitória, tanto nos praticantes como nos entusiastas adeptos. Aquando de um memorável jogo em Cetos, a freguesia esvaiu-se das suas gentes, uns a pé outros montados, só ficou quem não possuía capacidades ou meios para se deslocar ao local do encontro. Os visitados, influenciados pelos seus emigrantes brasileiros, reuniram uma equipa capaz de se bater com a da Gralheira e, segundo rezam as crónicas, para melhor levarem de vencida trataram de servir vinho, sem restrições, a todos os presentes. Os epicuristas não se fizeram rogados e, como raramente desfrutavam dos prazeres de Baco, deleitaram-se com abundantes libações que os deixaram meios ou completamente embriagados. Como se pode calcular o resultado foi desfavorável para os da Gralheira, pois pernas trôpegas e cabeça inebriada não deram para mais que uma derrota por cinco a um. Ainda assim, o desaire poderia ter sido maior se não tivessem convocado o “Grande de Felgueiras” que, sendo mais comedido na bebida e valendo-se da sua imponente estatura, impediu um resultado mais dilatado. O único tento dos visitantes foi obtido pelo “Necas”, que só se apercebeu do feito realizado quando se viu rodeado pelos companheiros, festejando efusivamente a marcação do golo.
Nos anos que se seguiram, a Gralheira manteve a hegemonia, de tal forma, que as suas vitórias deixaram de ser notícia. Quando perdia, então sim, era algo que dava brado e perdurava no tempo como uma efeméride que prestigiava quem a tinha alcançado. Ainda hoje, Antigos adversários recordam um resultado positivo ou um golo marcado, como momentos emblemáticos das suas amadoras carreiras.
Esta proeminência não é explicável apenas por critérios objectivos, fundamentados nas aptidões técnicas ou físicas dos seus jogadores. Embora alinhassem nas nossas fileiras elementos talentosos, como alguns jogadores sazonais filhos do êxodo rural, bem como outros fisicamente adestrados na rusticidade das lides do campo e sem os malefícios do fast-food, a verdadeira força deste grupo não residia no valor de cada indivíduo, mas no do companheiro que ombreava ao seu lado. A coesão na razão e no sentido comum, fortalecia o crer e a vontade que permitia levar de vencidos adversários formalmente mais aptos, mas que não possuíam a essência de uma mística colectiva.
Actualmente, o futebol bairrista está moribundo. É com tristeza nostálgica que denoto o abandono dos campos onde joguei. Cada um destes recintos devolve-me à memória uma panóplia de recordações inesquecíveis. A Gralheira já não é o que era, mas ainda permanece como ícone de um passado de acérrimos desafios, onde a técnica da força inflamava os ânimos da assistência que tanto exultava e aplaudia, como proferia impropérios e ameaças. A juventude tem outros interesses, proporcionados pela evolução económica e social das últimas décadas. Não está confinada ao espaço geográfico que ia pouco além da linha do horizonte. As múltiplas apelações desta nova realidade dispersam os objectivos e desagregam as vontades. A “bola”passou a ser um mero exercício lúdico, desapaixonado e sem alma, irreflexo da raça que concerne a identidade dos povos de Montemuro.
Vítor Silvestre

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O velório da "Carolina"

Ao longo da minha convivência com o “Samba”, personagem já apresentada e caracterizada anteriormente, existiram muitos episódios dignos de registo, mas um dos mais inusitados foi aquando do falecimento da sua tia Madalena. Como bom sobrinho, compareceu ao funeral, mas como o seu feitio se coadunava mais com momentos festivos que de pesar, ao invés de ficar no velório a prestar as exéquias fúnebres, resolveu fazer uma incursão ao café, “para dar de beber à dor”. Quando foi questionado sobre esta quebra de pragmática que denotava ausência de penar, aplacou a consciência dizendo que embora se sentisse pesaroso, afinal ela já estava velha e “atoleimada” e, como tal, a sua partida tinha de ser encarada como uma graça divina que lhe tinha sido concedida. A concordância foi generalizada e o assunto teria ficado por ali, não fosse a invulgar presença do “Tiu Germano”. Constava-se que o dito Germano e a “Carolina”, alcunha que apelidava a falecida, em tempos idos, teriam namorado ou tido uma fugaz aventura e, como tal, contámos essa suposta ocorrência ao “Samba”, que a desconhecia. De imediato começou acicatar o Germano, coadjuvado por um coro que em uníssono cantarolava a popular canção, "A saia da Carolina", mas com uma ligeira alteração na letra para se adequar à circunstância, sendo este o resultado:
A saia da Carolina tem um Germano pintado,
Tem cuidado carolina que o Germano dá ao rabo.
Sim Carolina...
Perante o semblante sisudo e agastado do visado, terminada a cantilena, irrompia uma hilariante gargalhada que contagiava todos os presentes. Mal esta terminava, já o “Samba” com os braços em posição similar à do louva-a-deus, perguntava:
- Ó Germano, você e a minha tia chegaram a “cobrir”?
O homem fulminando-o com o olhar e, em simultâneo, apontando para mim, insuflava a sua proeminente barbela e vociferava com veemência:
- Cala-te com essa “merda”!... Tem vergonha!... A mulherzinha “sobre terra” e tu a dares ouvidos a este bruto.
Esta reacção, tão intempestiva, ainda incendiava mais os ânimos, mas perante a percepção da sua partida era aliciado a consumir, gratuitamente, os artigos expostos no café. Foi-lhe sugerido um gelado, mas a oferta foi declinada quando foi informado que o gelado era algo frio, dizendo:
- Eu queria lá isso!... Só se fosse quente.
Como não existiam gelados quentes, pediu uma laranjada. Certamente, julgava ainda existir aquela bebida de cor e sabor a laranja fabricada pela “Schweps”, mas foi-lhe dito que de laranja só havia Fanta, ele anuiu e dirigindo-se à “barman”:
- Ò rapariga!..Dá-me aí uma “Panta”.
A bebida foi servida e, pelos vistos, agradou, pois sempre que intervalávamos no assédio à sua paciência, a dose de “Panta” era repetida. Porém, tanta bebida sintética interferiu com a dinâmica intestinal, valendo-lhe, durante a noite, o penico de serviço há várias décadas, no qual, fosse pelo longo uso ou pela falta de escova, já era indistinta a cor original.
Vítor Silvestre

sábado, 20 de março de 2010

Recordar um amigo

O advento da Páscoa, com todo o seu misticismo de morte e ressurreição, é um tempo propenso à introspecção e a uma reflexão mais incisa sobre as pequenas e grandes questões da nossa existência. Este “exame de consciência” leva-nos, frequentemente, a uma retrospectiva profunda das nossas memórias que, por vezes, alcança o estrato daquelas que já se encontram fossilizadas no subconsciente. Mas não necessitei de grande prospecção para dissertar, aludindo ao período pascal, sobre as vivencias partilhadas com um amigo. Desaparecido, mas não esquecido…
O “Samba” era assim denominado pelo facto de trautear canções deste género musical, reminiscência óbvia da sua estada no Brasil. Embarcou aos 17 anos, com parte da família, para se reunirem ao pai que se encontrava emigrado naquele país. Por lá passou a juventude e os primórdios da sua vida adulta, só regressando a Portugal já na fase da meia-idade, altura em que o conheci. O seu regresso não foi voluntário, a razão que o motivou foi o excesso de zelo no cumprimento de uma missão que lhe foi confiada. Um amigo do peito, pois estas incumbências só se pedem aos amigos, tutelou-lhe a guarda da mulher enquanto cumpria pena na penitenciária estadual por tráfico de cocaína. O “Samba”levou a tarefa muito à letra e os cuidados prestados foram além do que seria recomendado. Como tal, o incauto guardião foi confrontado com uma missiva que lhe comunicava o local, data e hora da sua morte. Perante tal cenário, achou por bem mudar-se para um clima mais temperado e menos letal para sua saúde.
Apesar da nossa diferença etária a empatia foi imediata. Talvez, porque do seu jeito tropical emanava uma aura de eterno adolescente, reflexa na forma leviana, despreocupada e até irónica com que encarava a vida e as situações mais constrangedoras do seu percurso. Entusiasmava-nos com as suas experiências: falava-nos de morenas exóticas de corpos esculturais, com dúcteis e lânguidas cinturas e da luxúria que estava ao alcance de um simples “cafuné”. Estes relatos despoletavam em nós, circunscritos a um meio ainda pautado pela antiga cartilha da moral e dos bons costumes, imagens idílicas de erotismo lascivo que preenchiam as nossas fantasias não experimentadas. Boémio convicto, dado a abundantes libações e possuidor de um espírito extrovertido, converteu-se num companheiro imprescindível nas noitadas que, invariavelmente, terminavam em arruadas eufóricas e irreverentes que tanto poderiam redundar em serenatas românticas, como em cantilenas obscenas e travessuras variadas. É que naquela época não existiam os meios que, actualmente, os nossos homólogos têm ao seu alcance. Por conseguinte, sem querer ser retrógrado, invoco um saudosismo saudável para lembrar esse tempo em que comungávamos de um espírito dinâmico e irrequieto, forjado na inexistência de factores materiais que inibem a criatividade e fomentam o sedentarismo. Partilhávamos uma amizade genuína que induzia um coeso espírito de grupo, cimentada por valores comuns preservados pelo ostracismo da interioridade.
O meu relacionamento com o “Samba” manteve-se intermitente, pois nem eu nem ele vivíamos na Gralheira. Até que um dia, após um longo hiato, regressámos em simultâneo e, por algum tempo, pude desfrutar da sua companhia de forma mais assídua. Foi nessa ocasião que o rebaptizei de “Zebedeu”, não sei exactamente a que propósito. Talvez por ter notado que uma vida de excessos tinha cobrado o seu preço, envelhecendo o seu rosto numa profusão de vincadas rugas que acentuavam a sua tez morena e, quando estava “ingasolinado”, davam-lhe um aspecto disforme e grotesco. Assim sendo, deve-me ter parecido que um nome tão bizarro se coadunava a essa invulgar fisionomia. Fosse por esta ou outra razão, o que é certo, é que no seu círculo de amigos mais íntimos o nome foi adoptado e entrou em circulação.
Mas, todo este preâmbulo é a contextualização necessária para vos contar um episódio que, seguramente, permanecerá nos anais da memória. Segundo os preceitos da Igreja Católica, os fiéis têm a obrigação de se confessar pela Páscoa, a denominada “desobriga”, e, seja por devoção ou por tradição, raros são os paroquianos que não cumprem este ritual. Em 1996 resolvi lançar esse repto ao “Zebedeu”. De início a ideia pareceu-lhe descabida, pois há muito se havia desvinculado dos ensinamentos do catecismo, mas acabou por achar que não seria má ideia aliviar, mesmo pouco convicto, a panóplia de pecados acumulados durante três décadas. Dirigimo-nos à igreja, onde já se encontravam os sacerdotes recrutados para auxiliar o pároco residente, e, algum tempo depois, o “Zebedeu” fazia a genuflexão e encaminhava-se para o confessionário. Coube-lhe em sorte o Sr. Padre Acácio, de Cinfães que, se ainda estiver entre nós, poderá corroborar este episódio. Após se ter ajoelhado, segundo o relato que nos transmitiu, o diálogo terá decorrido nestes termos:
- Meu filho, há quanto tempo se confessou?
-Há trinta e dois anos.
O confessor, que o inquiria com a fronte apoiada sobre a mão direita, elevou a cabeça e visivelmente surpreso com tão longa ausência, prosseguiu com a observação:
-Tanto tempo!?...
- É que durante esse período eu estive no Brasil.
-Hum… Esteve no Brasil… E que faltas por lá cometeu?
- Todas!...Menos matar!...
- Então também roubou!?...
-Sim, roubei!... No meu talho um kilo nunca teve mais que oitocentas e cinquenta gramas. Enquanto incentivava o cliente a olhar para o ponteiro da balança e assim verificar o peso, pressionava o prato com a ponta da faca para perfazer a diferença.
O clérigo com um misto de curiosidade e estupefacção, perante o testemunho daquele pecador tão credenciado, diametralmente diferente dos relatos monótonos e desinteressantes das “beatas”, repensou, em virtude de uma confissão tão substanciada que abrangia todos os pecados possíveis e imaginários, indagar outros aspectos desta alma pecadora. Depois de uma breve reflexão continuou:
- Qual é o seu estado civil?
- Divorciado.
- E depois do divórcio, teve mulheres?
- Muitas!..
- E actualmente?
- Nenhuma!...Pois vivo na Gralheira.
Neste ponto dos acontecimentos já o eclesiástico esboçava um contido sorriso, resignado a esta confissão tão invulgar. Considerou o inquérito satisfatório e prossegui com o protocolo instituído:
- Eu o absolvo de todas as suas faltas….Diga o acto da contrição.
- Eu só sei o antigo, que aprendi quando fui sacristão.
Perante revelação tão inesperada, colocou-lhe, afavelmente, a mão sobre a cabeça e proferiu em tom paternal:
-Bem-vindo meu filho!... É uma ovelha tresmalhada que volta ao rebanho.
Nesse momento, o “ Zebedeu” olhava o padre de soslaio e a sua aparência era mais de carneiro prestes a ser sacrificado e imolado, do que de rês gregária que torna ao redil, pois omitira que tinha sido apanhado a beber o vinho destinado à consagração e, por conseguinte, banido das funções de assessor eucarístico. Mas, talvez por este seu passado sacrista, só tenha sido penitenciado com dez padres-nosso e dez ave-marias, e, doravante, nunca mais deixou de cumprir o preceito da confissão pela Páscoa da ressurreição. Espero que este acto espontâneo e irreflectido me tenha granjeado algumas indulgências, necessárias à redenção da minha alma.
A vida do “Zebedeu” continuou calma e serena, como é apanágio das aldeias serranas, mas, como nos acontecerá um dia, o destino foi-lhe revelado. O arauto foi o relatório médico que lhe diagnosticou um tumor na laringe. A ciência fez o que pôde, mas, neste caso, foi muito pouco ou quase nada. Os sintomas agravaram-se, emudeceu, definhou e a última vez que o vi o pronuncio era de morte. Ali estava o meu amigo prostrado no seu mórbido leito, mudo e quedo, mas o olhar ainda reflectia a jovialidade do seu carácter. Como tal, não resisti a gracejar com uma estória em que projectávamos o seu casamento com uma viúva, não pelos seus atributos, mas por auferir de uma pensão razoável, que naquela fase da vida se sobrepõe às leis da atracção e do desejo. E na maneira costumada, disse-lhe:
-Então, parece que sempre vais deixar fugir a “Lebre”.
Ele sorriu, e no movimento mimético dos lábios foi perceptível o seu assentimento.
No diálogo que se seguiu, eu falei e ele escutou. Não o reconfortei com os dogmas da reencarnação e da vida eterna, os desígnios divinos, a resignação ao destino, ou a inevitabilidade da morte. Lembrei-lhe as certezas de um passado comum, em que partilhámos momentos edificantes de uma amizade que perdurará par além perecibilidade da matéria.
Passado algum tempo, recebi a notícia que o Nelson, era este o seu nome de baptismo, tinha falecido. Embora fosse uma morte anunciada, não conseguimos conter, no momento em que se une o acto ao destino, um sentimento de tristeza profunda que nos invade e nos deixa retrospectivos e nostálgicos. Mas, a sua partida não projectou um espectro de vazio e de ausência. O espírito livre e folgazão que viveu de forma intensa e adversa à ortodoxia da sociedade, perpetua a sua memória e dá forma à ideia em que o guardo.
Vítor Silvestre






quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Gralheira ficou mais pobre

A Gralheira ficou mais pobre!... Não me refiro a uma pobreza económica, mas a outra menos visível, menos mediática e, geralmente, imperceptível ao senso comum. Na modernidade dos nossos dias, em que vivemos sujeitos a uma ordem economicista e o valor de cada indivíduo é aferido pela bitola do materialismo, não é difícil esquecermo-nos de outros valores que, embora mais difíceis de quantificar, são fundamentais na formação e desenvolvimento da nossa identidade individual e colectiva.
A Gralheira ficou mais pobre, porque viu partir um dos últimos contadores de histórias que assistiu à transição do "tempo antigo" para uma nova era. Quando me situo neste espaço temporal, não julguem que tenho de recuar muito, apenas retrocedo cinquenta anos, porque a evolução galopante dos nossos dias só se tornou uma realidade nacional nas duas últimas décadas. Quem visitasse a Gralheira no início dos anos 60 do século passado, poucas diferenças encontraria se lá tivesse ido em data homóloga de há dois séculos atrás. Em termos cronológicos é uma fracção de tempo muito pequena, mas num âmbito sócio económico e cultural a diferença é abissal. De tal forma, que as gerações mais novas, distraídas com as inovações tecnológicas, apenas podem vislumbrar essa realidade através do conhecimento transmitido, oralmente, por estes ícones intemporais, que são os contadores de histórias.
O “Tiu Armando” era um contador de histórias!... Possuía o talento natural de prender atenção de quem o ouvia. Conseguia, com palavras simples e modestas, mescladas de arcaísmos e regionalismos, projectar uma imagem abrangente e substanciada da narração, imprimindo-lhe um realismo emotivo, que permitia ao ouvinte visualizar a cena como se a tivesse vivido na primeira pessoa. “Praguejador” inveterado, mas os seus impropérios não eram ofensivos, antes pelo contrário, contribuíam para acentuar o carácter genuíno daquele “Homem” de cabelos brancos e olhar penetrante, que envelhecera sem nunca perder a irreverência da juventude. Por isso, foi sempre tolerante com os desvarios da rapaziada, até, quando necessário, seu defensor. Coerente e pragmático, conservou a hombridade daqueles que não se deixam contagiar por moralismos arcaicos e devoções beáticas, motivadas, apenas, pelo temor divino e preocupadas com as intenções da alma. Sociável e cordato, mas acérrimo defensor das suas opiniões. Quando se envolvia numa discussão mais veemente quase lhe saltavam os dentes postiços, tal era a intensidade da sua argumentação. Para evitar que tal sucedesse, executava um rápido e característico movimento ascendente com o maxilar inferior, em simultâneo com uma leve projecção do pescoço para diante, reposicionando a dentadura no seu devido lugar.
Recordo, com saudade, os momentos que desfrutei da sua companhia; juntamente com outros do mesmo mester, como o “Manquito” e o ”Peixe”; Ouvindo as Histórias e Estórias da nossa freguesia. Escutava-os, como se cada palavra incutisse em mim um dever genético de as memorizar, de forma a perpetuá-las e lega-las às gerações futuras. Mas, são vastíssimos os reportórios que me transmitiram. Tenho dúvidas que, algum dia, possua engenho e arte para os compilar, mas, seguramente, irei tentar que este património não se dissipe nas brumas do tempo e da memória.
Só as vivências do “Tiu Armando” seriam suficientes para elaborar uma antologia de contos e narrativas da Gralheira. As suas aventuras e desventuras são tão substantivas que bastam para lhe conferir o estatuto de histórico e ascender à prateleira daqueles que, em maior ou menor escala, “se vão da lei da morte libertando”. Para corroborar estas afirmações, vou contar dois episódios da sua vida, nos quais são reflexos o espírito indómito e peculiar desta personagem.
O “tiu Armando”, foi, provavelmente, das poucas pessoas, que há memória, a serem excomungadas, prova clara que o estigma do Santo Ofício ainda perdurava, no SEC XX, em Portugal. O motivo de tal punição eclesiástica, ficou a dever-se ao facto de ter agredido o padre que paroquiava a freguesia, por este o ter classificado como homem de “olho vivo e pé descalço”, quando assistia à eucaristia encostado ao campanário, ao invés de o fazer dentro da igreja.
Quando o questionavam, só pelo prazer de lhe ouvir a resposta, que era bem conhecida:
- Ó “Tiu Armando”, você não queria magoar o padre, era só para o assustar?
Ele olhava-nos fixamente e acenando levemente a cabeça, falava com voz pausada, mas segura, como se proferisse uma sentença:
- Era para assustar?... O pau ia-lhe direito aos “Cornos”, mas bateu na esquina da casa e apanhei-o só de raspão pelo ombro… A minha vontade era deitá-lo por terra.
Assim se manteve vários anos como proscrito. Só com a visita do Arcebispo de Lamego e por intercessão da sua tia Laurinda, o seu nome foi apagado do Índex e de novo aceite na comunidade católica, com todos os deveres inerentes a um bom devoto.
Outra façanha, mas completamente ignota dos manuais da história contemporânea, foi ter esbofeteado, e saído incólume, um membro da legião portuguesa, por lhe ter exigido que se identificasse. O motivo de tal exigência deveu-se ao facto de ter expressado, publicamente, o desejo de que Salazar se finasse. Com este acto imprudente, apenas motivado pela verdura dos anos, afrontou mais o poder instituído do que muitos, mais mediáticos, que se arvoram em grandes democratas, opositores e combatentes do antigo regime.
Adeus “Tiu Armando”!.. Deixo-lhe esta menção póstuma, como marca indelével da amizade e estima em que o guardo, desejando, mesmo sendo incréu; não na essência, mas na forma como as crenças são propagandeadas; que Deus o tenha em bom lugar e lhe dê descanso eterno.


Vítor Silvestre