sábado, 17 de julho de 2010

Rivalidades

A rivalidade entre vizinhos é algo tão ancestral como os primórdios da humanidade. Seja pela posse da terra, acesso a recursos naturais ou por meras questões de orgulho exacerbado, todos os motivos potenciam conflitos de maior ou menor gravidade.
Os da Panchorra, como são os que nos estão mais próximo, tornaram-se os nossos arqui-inimigos naturais. As origens desse antagonismo perdem-se nos meandros do tempo e os motivos esbatem-se na oralidade das antigas memórias. Talvez por não existir uma razão palpável que sustentasse essa demanda. Ela existia apenas porque eles estavam ali e nós aqui, com o Cabrum a delimitar a fronteira física desta inimizade latente e adversa à racionalidade. Sendo o ribeiro a raia, convertia o Poço do Morrão numa espécie de terra de ninguém, local de renhidos combates pelo direito de se banharem durante o estio. Os Panchorros, como ironicamente eram designados, embora fossem em menor número, demonstravam a precisão e o alcance de fundibulários experimentados. Os seus projécteis metralhavam sem aviso os incautos banhistas que, apressadamente, recolhiam as suas roupas e subiam a encosta até à Seara do Ferro. Desse local, municiados da abundante pederneira aí existente, entrincheiravam-se e, do elevado reduto, ripostavam ao ataque perpetrado com tácticas de guerrilha elaboradas. A primeira abordagem era feita pelos mais novos, com a finalidade de criar uma manobra de diversão que distraísse os oponentes, sendo, assim, apanhados desprevenidos e sem tempo de reacção. Muitos rapazes da Gralheira aprenderam a nadar devido a estas circunstâncias. Quando se encontravam na margem inimiga, o medo superava a razão e, sem hesitar, lançavam-se à água como exímios nadadores.
Esta conflituosidade era mais visível na rapaziada, mas era reflexo de uma litigância enraizada na génese desta gente que, embora vivesse em aparente harmonia, mantinha sempre, na sua interacção, um ressentimento e uma desconfiança mútua. No entanto, existiam duas excepções: fogos e funerais. Nesses momentos, as desavenças eram esquecidas e os votos de pesar e a entreajuda eram genuínos. Nos incêndios o auxílio era fundamental. A Panchorra possuía escassos recursos de água, tendo esta, muitas vezes, de ser transportada do ribeiro até ao local do sinistro. Como também era imprescindível a deslocação para se abastecerem de géneros e mercadorias, em virtude da inexistência de estabelecimentos comerciais e a Gralheira ser o interposto mais próximo. Embora as duas aldeias fossem paupérrimas, nós éramos um pouco menos. Possuíamos mais e melhores recursos agro-pecuários e uma panóplia de serviços artesanais necessários a uma economia de subsistência. A modernidade chegou-nos mais cedo, mas os panchorrenses, capitaneados pelo famigerado “ Ruço da Cara Linda” que de forma depreciativa dizia:
- Os da Gralheira, não valem nada, só comem cebola!... - Não baixavam a cerviz e com um orgulho inabalável, porfiavam nos pergaminhos dos seus antepassados.
Este panorama não faz parte das minhas memórias. Eu nasci numa época em que o espectro da fome se dissipara e a miséria tornara-se mais modesta. Estômagos reconfortados e condições de vida mais dignas, traduzem-se em mentes mais esclarecidas e menos propensas a obedecer aos instintos primários dos que estão no limiar da subsistência. A emigração quebrou as linhagens consanguíneas perpetuadas pela interioridade, contribuindo para a emergência de identidades comunitárias mais ecléticas e menos arreigadas às suas raízes.
Gradualmente, o posicionamento antípoda deu lugar a relações mais amistosas e só esporadicamente, como nos jogos da bola, os espíritos avinhados ou empedernidos denotavam resquícios desse passado desavindo. Hoje, convivemos em paz. No entanto, o velho estigma continua impresso no subconsciente de algumas almas e, de vez em quando, ainda se ouve dizer:
- Cuidado com os da Panchorra!...

Vítor Silvestre