segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Ruço da Cara Linda


O Ruço da Cara Linda”
 Não era necessário ser versado em toponímia para destrinçar os fundamentos que deram origem a cognome tão pomposo. A tez clara e sarda e o escalpe aloirado eram provas cabais que ali não se imiscuíra sangue mouro ou latino. Apenas o corpo quase meão, moldado pelas carências de uma infância subnutrida, desvirtuava as origens celtas ou visigodas dos seus antepassados. Panchorrence de gema, pela força do seu carisma converteu-se no capitão-mor da legião de arruaceiros da dita freguesia. Não havia festa ou romaria onde o “Paula “, com o seu séquito de rufiões, não comparecesse para intentar alguma escaramuça colateral. Líder astuto e pragmático, não se regia por códigos de honra ou de nobreza. Nunca procurava o combate aberto e frontal, preferindo desferir ataques cirúrgicos em que o fator surpresa ou a vantagem dos números lhe garantisse uma sortida bem sucedida.
A única exceção a esta estratégia foi executada na invasão a Vale de Papas, no dia da festa consagrada à padroeira. Reuniu as hostes e, em formatura, irromperam pelas ruas do lugar tocando apitos, assumindo uma postura atrevida e provocatória, dizendo:
-Aqui manda a Panchorra!
Os papences, embora fossem em menor número, tinham salgadeiras mais fartas, caixas rasas e os longos dias de cavada tinham-lhes robustecido o corpo e o espírito para prepararem um ataque consertado. Conhecedores do labirinto de ruelas e quelhos da sua terra localizaram com facilidade os confiantes e estridentes invasores que, sem se aperceberem, foram cercados e atacados em duas frentes. Enfrentando o ataque simultâneo, cerraram fileiras, mas o ímpeto inicial da investida rompera as suas linhas e, para piorar a situação, o comandante “Ruço” e seu filho e lugar-tenente Anastácio foram postos fora de combate por dois golpes certeiros do “Cabeça de Vaca”, cuja cernelha pedia meças à de um touro de lide. Desgovernados e dispersos foram facilmente desbaratados, não lhes restando outra saída senão retirar o mais rápido possível, com os perseguidores no seu encalço. O caudilho, muito maltratado, acompanhou a debandada das suas tropas apenas escoltado pelo Anastácio, mas, perante o caos do maior desastre da sua carreira, manteve o garbo e a postura que o seu posto exigia e, ignorando o perigo, ordenou ao subordinado:
-Alto!..Tenho que “cagar”.
O subalterno, fosse pelo dever hierárquico ou respeito filial, obedeceu, ficando de plantão até o serviço estar terminado e ser dada ordem de marcha.
Apesar do retumbante insucesso, não feneceu o espírito bélico deste exército de insurretos incorrigíveis, apenas, no briefing subsequente, resolveram retornar às velhas táticas de guerrilha e continuarem a dar e receber monumentais cargas de paulada.
 Aventurar-se no seu território era incursão arriscada que, quase sempre, redundava nalguma situação difícil de debelar. Assim aconteceu a um indivíduo de Gosende que, atraído pela luxúria de um baile à porta fechada, viu-se metido numa “alhada” quando o “Ruço”, no rescaldo da zaragata ocorrida na pista de dança, o descobriu escondido no caniço. Ao ver o olhar impiedoso do algoz, lançou-lhe uma humilde súplica:
- Ó “Tiu Paula” não me bata.
Ao que este, com sarcástico eufemismo, retorquiu:
- Eu não te bato, apenas encostas a cabecinha ao pau.
O “encaniçado”, desfeita qualquer esperança de clemência, mediu a distância e, quando o carrasco se preparava para lhe assentar uma cacetada, deu um salto indo-lhe embater, “a pés ambos”, no raquítico peito. O “Cara Linda”, “embaçado”e estirado no soalho, ainda gritou:
- Agarrai-o!!!...
Mas sem sucesso.
Os anos foram passando e, conjuntamente com as sequelas de uma vida atribulada, forçaram o descanso do guerreiro. Gozava a pensão de subsistência repartida entre o seu torrão natal e a rua José Patrocínio em Lisboa, enclave panchorrence estabelecido pelo êxodo rural. Podia já não percorrer feiras e arraiais, mas na sua mente pairavam os resquícios desse passado saudoso e, quando estava “ingasolinado” nalguma taberna do “Bairro Chinês”, ainda o ouviam murmurar:
-Aqui manda a Panchorra!
Foi num desses ébrios antros que um emigrante no Brasil lhe perguntou:
-O “ sinhor” é “o Ruço da Cara Linda”?
Ao que o interrogado respondeu com a costumada ousadia:
- Eu mesmo!
- Que “bacana”, como é que ainda é vivo?
Estupefacto, fez um esgar pronunciado e ripostou:
- Então porquê, já me mandou a morte?
-Não, mas como levou tanta pancada, pensei….
O velho “Paula” oscilando ao de leve a cabeça em sinal de assentimento, depois de uma breve reflexão, respondeu:
-Pois levei, mas o meu quinhão não ficou por dar.
De todos os inimigos e adversários que constavam do seu rol, os mais estimados eram os da Gralheira. Era um ódio endógeno alimentado desde o berço por um antagonismo secular, cada vez mais acirrado pelos indícios de modernidade que começavam a despontar nos seus vizinhos. A luz elétrica era o que lhe deixava o travo mais amargo. Talvez por ser o mais visível e servir como arma de arremesso na constante troca de galhardetes entre as duas aldeias. Por conseguinte, quando viu, duas décadas depois, iniciarem-se os trabalhos de instalação dos cabos e contadores para receberem a tão aguardada energia, o seu espírito ressabiado exultou de alegria. Não conseguindo conter a ansiedade, acompanhava a evolução da empreitada, perguntando insistentemente:
- Então, quando é que a luz está pronta?
Ao que os operários, para tranquilizar aquela alma inquieta, respondiam com diligência:
-Já falta muito pouco, não se preocupe que dento em breve verá a sua terra iluminada.
Ao que o impaciente inquiridor, monologando com os seus botões, dizia em surdina:
- Agora, é que vamos fazer ver aqueles “merdas” da Gralheira quem é que tem luz…
Os trabalhos foram evoluindo e foi marcada a data da inauguração para o dia da festa em honra de S.Lourenço. Toda a freguesia se engalanava para celebrar com pompa e circunstância a efeméride, para gáudio do decano comandante que aguardava triunfante a realização do evento. Mas, insondáveis são os desígnios divinos ou os caprichos do destino e, pouco tempo antes da data anunciada, finou-se o famigerado “Ruço da Cara Linda”. Foi com grande pesar que a notícia foi recebida pelas redondezas, mesmo aqueles que tinham sido alvo das suas emboscadas, com o passar do tempo, encaravam com complacência as ações deste senhor da guerra, afluindo em grande número ao funeral. Um dos mais pesarosos era o Anastácio, descendente em primeiro grau, confidente e fiel companheiro de muitas jornadas. Conhecedor das apetências do seu pai, no cortejo fúnebre, carpia a dor com um lamento muito peculiar:
- Aí paizinho!... Tanto querias ver a luz e não chegaste a ver a luz…
Não viu a luz, mas a sua imagem ainda resplandece na memória da nossa gente que o recorda como homem de uma época em que as disputas bairristas, geradas na ignorância e acicatadas pela miséria, eram mediadas pelo “jogo do pau”. Mais temerário que valente e mais ousado do que destro, é recordado como uma figura pitoresca, muito diferente da reputação de desordeiro que os seus atos indiciam. Permanece como personagem de uma era, à qual assisti ao epílogo, reflexa de um Portugal antigo, preservado por uma evolução comezinha e assimétrica, que poucos desejam… mas deixa alguma saudade.
Vítor Silvestre

domingo, 16 de outubro de 2011

Os “Barbas Longas”de Feirão


 A forma como os “feirões”eram apelidados nada tinha a ver com a sua fisionomia. Não seriam imberbes, mas, certamente, as suas faces esquálidas não ostentavam barbaças que rivalizassem com as representadas nas xilogravuras de Afonso de Albuquerque ou D. João de Castro. O termo, não sei porquê, era depreciativo e conotava-os como gente de “olho vivo e pé ligeiro”. É que a necessidade aguça o engenho. Quando se tem pouco mais que a água da fonte e ferrar os dentes em cascas de carvalho não sacia as agruras da fome, até um cristão se desenvencilha como pode. De maneira geral, tentavam equilibrar a sua economia com expedientes mais ou menos ilícitos. Mas, se convergiam no objetivo, divergiam no método.
 O José Augusto ia furtando uma carteira, roubando um cordeiro, forçava a entrada numa residência, mas sem nunca recorrer à ameaça verbal ou violência física, era ladrão e cavalheiro. Representava, como direi… o papel de repartidor público que partilhava os proventos obtidos em animadas súcias. Foragido hábil e perspicaz, mas quando confrontado pelas autoridades confessava crimes e cúmplices e, se a fuga não fosse possível, entregava-se sem resistir à detenção. Outros eram de outra índole, não se coibiam de intersetar os incautos viandantes daquelas serranias, intimidavam e agrediam, espoliando-os dos seus pertences. Mas, algumas vezes, falharam os seus intentos, pois nem todos se amedrontavam ou andavam desprevenidos, tornando-se alvos difíceis de apanhar.
O Cândido, natural de Mangualde, casou na Gralheira e aí se estabeleceu no negócio de fazendas a retalho. Por imperativo da profissão fazia inúmeras viagens cujo as rotas, inevitavelmente, cruzavam alguns caminhos batidos pelos bandoleiros. Precavido, não acompanhava as duas mulas que transportavam a carga, seguia-as a alguma distância para evitar ser emboscado. Numa ocasião, ao passar na Alagoa, viu uns vultos acercarem-se do carreiro e segurarem as bestas pelo cabresto. Deitou mão à carabina de sete tiros que trazia na bandoleira e, em menos de nada, duas balas rasantes zuniram nos ouvidos dos meliantes. Estes, nem esboçaram a mínima resistência, deixaram a presa para não deixarem a pele, o autor dos disparos abatera um cão raivoso a mais de trezentos metros, sabiam que o facto de saírem ilesos não foi obra do destino.
Noutra ocasião, cavalgavam lado a lado o Pinto da Gralheira e o Zé Camilo de Cotelo quando lhe saltaram adiante meia dúzia de rufiões de paus em riste, com intenções bem esclarecidas.
Depois de refeitos do inesperado atrevimento disse, calmamente, o Zé para o companheiro:
- Como é…Desmontas tu ou desmonto eu?...Para estes “farrampelhas” não será necessário apearmo-nos os dois.
Ao aperceberem-se de quem tinham pela frente, dois homens de estatura e ombros a condizer que não atalhavam caminho perante o perigo, gritou o mais espavorido:
- “Fujide”!.... É o Pinto e o Zé Camilo!...
 Para evitar estes desaires, que podiam pôr-lhes em risco a integridade física ou leva-los a prestar contas à justiça, a maioria recorria a um estratagema mais dissimulado, mas não menos doloso para a bolsa dos que, por desconhecimento ou descuido, se aventuravam a passar pela cita freguesia. Abordavam-nos e de forma jovial, mas denunciando o firme intento de os conduzir para a taberna, onde eram coagidos a pagar o que lhes apetecesse consumir. Era um método menos arriscado e mais fiável, mas não totalmente eficaz, pelo menos não o foi na história que passo a contar:
O “tiu Tobias” regressava à Gralheira, quando, nas imediações de Feirão, notou que não tinha tabaco, o vício venceu o medo e a razão, decidindo ir lá comprar uma onça. Mal tinha chegado junto à venda, já se encontrava cercado de rapaces e, segurando as rédeas da égua que montava, disseram-lhe em tom familiar:
-Uhei!... Ó Tobias!.. Hoje, pagas um cântaro de vinho!
O homem, vendo-se encurralado, respondeu de forma entusiástica:
-Um cântaro!... Até pago dois!
Devido à imediata anuência, os detentores diminuíram a pressão no freio do animal que, embora não fosse um puro-sangue ainda guardava alguma nobreza da origem da sua linhagem, instada pelo instinto que a impelia ao movimento resfolegava e escavava no chão térreo de músculos e tendões tensos, prontos para reagirem à ordem do cavaleiro. Conhecendo a fogosidade da montada, aproveitou a desatenção generalizada para fincar os calcanhares nos seus flancos. Como uma mola, o equídeo projectou-se para diante derrubando quantos se lhe interpunham na passagem e, a toda a brida, só a viram escapar, como uma “fopa”, na curva que se seguia. Apenas tiveram tempo de lançar uma ameaça, enquanto arfavam estendidos na poeira do caminho:
-Ah!!! … “Fareleiro”!... ”Hades” cá passar!
Mais recentemente, o Alfredo, meu primo afastado, passava pela estrada que atravessa o lugar quando um cachorro veio enfiar-se debaixo da viatura. Nada pode fazer para evitar o acidente, mas, de imediato, foi abordado pelo pertenço dono, secundado por uma trupe pouco amistosa, exigindo ser compensado pela perda material e sentimental que sofrera. Por sorte, estava presente o “Clemente da Barraca” e, como anda desavindo com grande parte dos seus conterrâneos, resolveu intervir em prol do pacato Alfredo que estava prestes a ser sentenciado por aqueles juízes em causa própria. Com a tomada de posição do temperamental Clemente, os ânimos serenaram, a sua fama de pistoleiro era suficiente para garantir salvo-conduto ao réu. Mas, o meu parente, para evitar complicações futuras, resolveu oferecer cinco contos para minimizar o prejuízo causado. Perante tal oferta, dissiparam-se as hostilidades e, em ambiente de farra, esgueiraram-se para o café onde cambiaram a nota, sem demonstrarem o mínimo pesar pela vítima do sinistro.

Esta realidade é uma nebulosa memória de outros tempos, em que a pobreza não sabia quantos filhos tinha. O espetro da fome era real e pairava ameaçador sobre aquelas almas. Subsistir era uma prioridade premente que o consumismo das últimas décadas não consegue conceber. O que nos sobra em supérfluo, faltava-lhes no essencial. Por isso, estes actos têm que ser analisados no contexto histórico em que se inserem, não podemos fazer juízos de valor fundamentados na realidade dos nossos dias.
No entanto, se passarem por Feirão … Reduzam a velocidade, redobrem atenção, não vão atropelar um canídeo e dar pretexto, remanescente dos velhos hábitos, para vos extorquirem uma canada.
Vítor Silvestre

domingo, 14 de agosto de 2011

A Banda

As gentes da Gralheira sempre manifestaram interesses culturais que iam muito além das condições sócio económicas em que viviam. Como dizia o professor Agostinho da Silva, a principal prioridade do ser humano não é a cultura, mas o sustento, e só depois de asseguradas as necessidades primárias é que tendemos a desenvolver actividades de carácter menos premente. Por isso, é quase contranatura que numa aldeia desterrada nas encostas agrestes de Montemuro, com uma subsistência paupérrima, habitada por espíritos afeitos a uma racionalidade empírica, despontassem tendências reflexas de meios mais cosmopolitas.
A corroborar estas afirmações temos a banda de música da Gralheira, fundada no início dos anos vinte do século passado. É certo que foi efémera, não durou duas décadas, mas isso pouco importa, o admirável é que tenha existido. Esta empresa só foi possível devido ao empenho de alguns melómanos que, com uma vontade férrea, reuniram o capital necessário para adquirirem uniformes e instrumentos, seguindo-se a tarefa estóica de iniciar mentes musicalmente obtusas nos trâmites do solfejo. Com abnegação e perseverança tudo é possível e, contra as probabilidades, a banda emergiu num meio ávido de eventos que mitigassem as vicissitudes de uma existência marcada pelo isolamento e pela pobreza. Talvez por isso, os seus contemporâneos a achassem de grande qualidade, em contraponto com a apreciação do mestre que num universo de vinte e cinco elementos apenas considerava ter quatro músicos dignos desse nome.
Naquela época existiam poucas estradas e, quando as havia, a cache que recebiam não permitia pagar o frete de um meio de transporte alternativo às longas caminhadas feitas pelos carreiros da serra. A partida iniciava-se muito antes de raiar o dia e a chegada já com noite cerrada. As poucas horas de sono, aliadas à lonjura do caminho, depois de uma semana de seis dias de labuta intensa, levavam ao limite a resistência física daqueles homens que, enrijecidos por uma vida espartana, abordavam uma marcha de cinco horas com a naturalidade de um passeio matinal. Apenas há memória de um episódio em que o cansaço levou de vencida a têmpera dos serranos. O “Anunciou” adormeceu enquanto tocava o bombo, caindo com grande estrondo, e, de imediato, toda a banda parou a compasso como se a batuta do maestro o tivesse ordenado. Foi uma cena hilariante para toda a assistência e um dos presentes deixou no ar uma exclamação em jeito de pergunta:
- Ele, se calhar, não ceou!?...
Como a dicção não foi muito boa, o “não ceou”, soou a ”Anunciou” e, como tal, assim ficou apelidado o sonolento percussionista.
Noutra ocasião, foram convidados para irem tocar nas festas da freguesia do Touro, onde iriam competir com outra banda. Como o evento era de relevo e não queriam comprometer o início das festividades, desta vez, alugaram uma camioneta de careira para os transportar, mas, depois de se deslocarem a pé até Bigorne e terem aguardado um período de tempo mais que o desejado, o transporte não apareceu e tiveram de fazer o resto do percurso como o tinham iniciado. Devido a este percalço chegaram para além da hora combinada, o que enfureceu os mordomos e os demais presentes que esperavam ver o despique entre as “Musicas”, como tinha sido anunciado. Estava a assistir ao arraial o “Chinela”, negociante de gado, figura conhecida e estimada pelas gentes da Gralheira que, devido à reciprocidade de afecto que sentia, ao ver os ânimos exaltados temeu pela integridade física dos retardatários músicos. Acirrar os ânimos estava um tal Mário do touro que tinha fama de valente e atrevido, valentia que não impediu que perdesse um braço por motivos passionais devido ao atrevimento, e incitando os descontentes dizia:
- Os serranos…, quando cá chegarem, … vão ver como elas lhe mordem!..
A trupe secundava as intenções e, já tocados pelo “pinga”, volteavam “juncos e marmeleiros” lançando ameaças.
Estavam as coisas neste pé, quando irrompeu pela multidão a banda a “toque de caixa” tocando uma animada marcha.
O “Chinela”, que também era conhecido e considerado por aquelas bandas, há algum tempo que apelava ao bom senso dos algozes tentando apazigua-los. Com a chegada dos retardatários, sobressaltado, preparava-se para intensificar as suas intercessões, quando, para seu espanto, ninguém proferiu uma ameaça ou sequer uma má palavra. Refeito da surpresa, interpelou a plebe em geral e o Sr. Mário em particular:
-Então, não batem nos serranos?...
Ao que responderam quase em uníssono:
- Porra!... Que homens tamanhos, tão fortes e tão feios nunca vimos na nossa vida.
Por sorte, a vanguarda era composta pelo “Pelinho”, Pinto, Florêncio, Aires, Gregório, Manuel Maria e outros que no seu conjunto apresentavam uma formatura alta, encorpada e, como diria o Aquilino, com as faces talhadas à enxó. Era um quadro que na sua maioria não primava pela valentia, mas como só foi avaliado pela aparência, os pretensos agressores acharam por bem retrair-se nas suas intenções e desculpar o atraso que foi devidamente justificado.
Os contratos das bandas não eram a “seco”, tinham a alimentação incluída. Os músicos eram distribuídos pelas casas da freguesia para comerem a fressura do “almoço” e a carne assada e o arroz do forno ao “jantar”, cabendo aos mordomos dar vinho e alguma merenda nos intervalos da atuação. Em Solgos, não seguiam este preceito, as refeições eram confecionadas pela comissão de festas e o repasto coletivo. Chegada a hora da refeição, depois da missa e da procissão, sentaram-se para degustar o cabrito que estava a ser servido, quando inalaram um odor intenso e desagradável, pois o animal era chibo velho e “inteiro”. O cheiro e sabor a bedum, mesmo para narinas e estômagos pouco exigentes, era repulsivo, intragável e quase todos se abstiveram, apenas o “Pelinho” comia com satisfação questionando admirado, com a sua fala tartamuda e nasalada, a abstinência geral:
- “Atão, não comeides?... “Tá bem bô”!...
Na sua curta história, a banda da Gralheira deixou um reportório de episódios maior que o das pautas que interpretou, enriqueceu a memória colectiva e disseminou as sementes de uma apetência e um gosto pela música que persistem no âmago da nossa cultura. Foram essas reminiscências que alavancaram, em mil novecentos e cinquenta e oito, a apresentação de um cortejo folclórico que se revelou um dos maiores eventos da região, com uma afluência sem precedentes. Também a existência e a formação de instrumentistas fomentou a fundação, nos anos oitenta do século vinte, do rancho de folclore que, apesar das carências humanas provocadas pela emigração, ainda se mantém em atividade.
Pelo legado imaterial dos nossos antepassados, devemos preservar os símbolos que dão forma à nossa identidade. Testemunhas intemporais que honrarão a sua e a nossa memória, falando por eles e por nós.   
Vítor Silvestre